sábado, 19 de janeiro de 2013

Meu memorial ideal


Quem me dera o CV pudesse ser um memorial informal-ideal.

Teria tempo de me explicar, me justificar e de responder aquele bando de "mas porque que você não faz..." que sempre ouço ao contar minha trajetória.

Acho que no fundo vida é um grande memorial, nada curricular muito longe de estar presa hermeticamente numa grade, distribuída em vagas experiências profissionais.

Se eu pudesse escolher transformar o meu CV em memorial, ele seria mais ou menos assim:

Minha primeira lembrança, remonta aos meus quatro anos de idade. Eu brincava debaixo do meu bloco com uma boneca da Mônica vestida de roqueira. Ela tinha até uma guitarra. Eu adorei a boneca, mas pouco tempo depois, fiquei com inveja da Mônica. Ela era baixinha, gordinha e dentuça como eu, mas eu não tinha super força. Me resolvi por um tempo com minha lancheira da tappewere, batendo nos meninos que me xingavam. Mas logo logo eles ficaram muito maiores do que eu e eu apelei para o meu irmão. Não sei se meu irmão mais velho gostava de me defender ou de bater nos meninos menores com uma boa desculpa. Rapidamente ninguém mais mexeu comigo, nem o Renato. O menino mais chato do primeiro grau e também o mais bonito. E eu, entendendo os mais fracos como eu, não implicava com eles. Instaurou-se a paz no primeiro grau.

Até a sexta série (era esse o nome na minha época) eu era uma excelente aluna. Ganhava diplomas de desempenho e só tirava nove ou dez. Isso me rendia até presentes extras no Natal. Uma vez ganhei um estojo de maquiagem da Claude Bergère para crianças. Não usava maquiagem, mas gostava dos estojos. Minha única mancha curricular foi um trabalho que não dei conta de fazer sozinha e, como sabia que ganharia sete, não entreguei. Pedi para a professora estender o meu prazo e ela disse que não. Ganhei zero no trabalho e chorei copiosamente ao telefone tentando explicar para minha mãe o porque da nota.

Até onde me lembre, nunca ganhei um livro de presente na infância. Talvez por isso passasse meus recreios na Biblioteca da escola. Eu adorava ler as fábulas do La Fontaine. Não tanto pelas histórias, e mais pelos desenhos. Era uma coleção muito bonita de capa dura e as fábulas ficavam numa estante acessível. Eu nunca gostei de pedir ajuda para pegar livros no alto. Sei que hoje elas me parecem um pouco forçadas. Uma moral adulta para crianças, mas elas me ajudaram muito a manter a coerência num mar de ordens contrárias. "Por que o Betinho pode e eu não posso? Porque o Betinho é menino. Mas o que isso tem a ver? Ser mais forte e mijar em pé não vai ele melhor no video-game." :/

Não entendi. Nunca entendi a desigualdade entre os sexos e quando entendi, não concordei. Não faz o menor sentido. Como também não fazia o racismo.

Eu estava sentada dentro do carrinho de compras. Acho que tinha seis anos. O Betinho me empurrava. Estávamos brincando de corrida no supermercado.  De repente tivemos que parar e uma menina me olhou e me deu língua. Eu não entendi. O Betinho viu e e ficou indignado. A menina me deu língua de novo e me chamou de burra. Eu continuei passada. A menina nem me conhecia e já sabia que eu era burra. O Betinho, que devia ter uns sete anos e meio chamou ela de burra e... pretinha. Empurrou o carrinho e fomos embora. Eu continuava de boca aberta. "Betinho, porque você chamou aquela menina de pretinha?" "E eu lá ia deixar ela te dar língua? Aquela pretinha..." 

Eu nunca descobri o porque daquela menina ter me dado língua, mas entendi pouco tempo depois porque meu irmão chamou ela de "pretinha".

(continua...)