quinta-feira, 16 de maio de 2019

Dor e a dor de ser professor - parte 1

Devido ao tamanho, esse post será dividido em duas partes.

Eu sempre quis ser professora. Desde criança, dando aula de mentira para amigas e bonecas até nos trabalhos de escola onde eu era intimada a falar em público pelos grupos, que achavam que eu era boa de oratória. Nesse sentido seguiu a minha formação. Entre assumir um sonho e desempenhar um papel sofri bastante. Primeiro pelas pessoas que me diziam, "Mas você é tão inteligente! Porque não faz um concurso público?" 

Todo mundo acha melhor fazer um trabalho entediante em troca de um bom salário no final do mês. Eu já trabalhei na iniciativa pública e nunca gostei do serviço. Nada contra, mas não era pra mim. Pode ser que eu não tenha achado a posição certa, mas a gente só vive uma vida e a minha se desenhou dessa maneira. 

Durante muito tempo o processo foi de aceitação. Eu dava aula durante a graduação e dizia para mim mesma que era só para me manter até eu me formar. Já pensava em fazer mestrado e fui aceita em um programa em Lille, na França. Nada relacionado ao ensino. Mas não fui. Meus pais não tinham como me manter lá, mesmo eu dizendo que podia trabalhar para me manter.

Minha mãe ficou com medo de não ter como pagar nem para eu voltar pro país caso as coisas dessem errado. Meus pais não falavam francês, nunca haviam saído do país e nós não tínhamos nenhum amigo ou conhecido na França. Paralelamente as aulas continuavam. Cada vez mais gente me procurava e eu não tinha tempo para encaixar os alunos. Eu cheguei a dar aula em 3 escolas ao mesmo tempo. Trabalhava tanto, que não tinha tempo para preparar aulas ou estudar. Tive que comprar uma moto para me locomover, pois do contrário, gastaria todo o meu salário em transporte. Mesmo assim eu continuava repetindo para mim mesma que isso era temporário. Tirei minha segunda habilitação para aumentar meu leque de atuação. Era agora formada em Letras Francês e Português. 

Foi um alívio momentâneo. Pensei que poderia então passar num concurso e dar aulas no GDF. O salário era relativamente competitivo em relação à iniciativa privada e eu teria coisas que nunca tinha tido antes: 13º, férias, carteira assinada... Cheguei a passar em um concurso para minha primeira área, mas como ainda estava na graduação, não consegui a pontuação necessária no currículo. Fiquei em sexto lugar de cinco vagas. Depois que eu me formei eu simplesmente não conseguia tempo para estudar. Tinha que fazer para a área de Língua Portuguesa, que não era parte do meu cotidiano. Além disso, as nomeações estavam uma confusão. Tinha gente para ser nomeada quando abriam outros concursos, greve. A situação não era muito convidativa.

Durante esse tempo que trabalhei em escolas privadas eu vi de tudo. A profissão de professor de língua estrangeira não é regulamentada. Isso quer dizer que uma pessoa com qualquer nível superior pode dar aula de língua. Contrariamente a isso, eu tinha uma licenciatura em língua e literatura francesa. Aprendi inúmeras coisas na graduação. Até traduzir um texto do francês antigo para o moderno. Fiz aula de expressão oral e escrita em língua francesa. Tive muitos professores de outras nacionalidades, suíços, franceses, brasileiros que viveram muitos anos na França e etc. Até um estágio de imersão eu fiz, pois ganhei uma bolsa do governo francês. 

Mas eu conviva com colegas que não eram professores, muito menos formados em letras. Não sabiam o que era a forma nominal do verbo. Algo muito útil de saber, pois os alunos brasileiros sempre se enrolam com tempos verbais compostos. O que mais me marcou foi uma colega francesa. Nós dávamos aula numa escola pequena e a dona me pediu para escolher o método de francês. Eu escolhi um bastante comunicativo, com um pequeno foco na gramática. Bem dentro da abordagem que estava (e ainda está) em voga no momento, a abordagem comunicativa. A francesa veio trabalhar logo depois na escola e vinha reclamar com um ar de superioridade a respeito do método. Muitos professores que eu conheci tinham dificuldade com ele, pois davam aula de LE do mesmo jeito que tiveram aula na sua língua materna, aula de gramática. Em sua maioria, esses professores não eram formados em Letras, muito menos tinham uma licenciatura. Ela não sabia usar o método. E era bem o boom do “professor nativo”, então, para ajudar a dona da escola, de quem eu gostava muito, me ofereci para ajudar os professores com o método.

A aula (ou ateliê) quase acabou em briga. A francesa se concentrou em testar meus conhecimentos e como não conseguiu atingir seu objetivo, começou implicar com qualquer coisa, inclusive minha tentativa de usar o “tu” para expressar que éramos colegas e aquele ambiente era seguro para expor qualquer dúvida ou insegurança. Além disso, foi um fiasco tentar explicar para a francesa que ela só precisaria explicar a regra gramatical, caso o aluno não conseguisse entendê-la naturalmente. Ela achava super importante explicar todas as conjugações verbais na primeira aula. Outra coisa que ela não conseguia entender era porque os alunos brasileiros tinham dificuldade para entender qual o auxiliar usar no passé composé. Ao mesmo tempo, explicar que coisas no método poderiam ser ignoradas, como a diferença entre o fonema [p] e [b], claramente colocada ali para os hispano falantes. Mesmo assim, naquela escola, e em muitas outras onde trabalhei, o meu salário, independente da minha qualificação, era igual ao desses professores. Mesmo que eles não soubessem preencher um diário ou fazer um plano de aula. 

Somava-se a isso o fato de eu sempre ganhar por hora. A hora da aula que eu dei e não a que eu preparei. Pode parecer estranho, mas o professor não chega na sala de aula e tira milagrosamente analogias e piadas da cabeça. Aquela musiquinha que encaixa tão bem com o conteúdo da aula, tudo aquilo foi planejado. E um professor recém-formado leva entre 2 a 4 horas para preparar uma aula de 45 minutos. Dependendo do assunto, se for algo que ele não gosta e/ou não é muito bom, o tempo que ele vai passar estudando e preparando aumenta. Eu, por exemplo, gosto muito mais de literatura do que de qualquer outra coisa. Infelizmente, quase nunca tenho a oportunidade de juntar o “útil” ao agradável. Até porque, na maioria das vezes, meu público só lê Harry Potter. Então, até hoje, quando tenho que explicar o 3 groupe (ou a terceira conjugação), perco algumas boas horas estudando e pensando novas maneiras de abordar o assunto. 

Isso sem contar as provas. Elaborar prova é sempre um martírio para mim. Achar um texto no nível certo com o vocabulário que meus alunos possuem é quase um milagre. Na maioria das vezes eu mexo no texto para ficar mais “A1” ou “B2”. E os áudios para as partes de compreensão oral? Quando eu trabalhava sozinha, quase sempre tinha que usar alguma faixa do próprio método fornecido pela escola. Não tinha essa de internet em sala ou achar no torrent. Hoje, felizmente é muito mais fácil encontrar um áudio livre de direitos na internet. Mas mesmo assim, ainda é preciso muita pesquisa para que ele se encaixe no arcabouço dos alunos.

Além disso, tem a rotina de correção de provas e trabalhos. Reuniões e mais reuniões. Temos que nos manter atualizados. Cursos, seminários, simpósios. Coisas que quando eu estava na iniciativa privada eram pouco valorizados. Quanto maior a sua qualificação, pior para escola, afinal, terá que te pagar mais. Mas se engana aquele que pensa que a coisa está fácil no sistema de ensino privado.  

Quando comecei a dar aula, era muito mais uma questão de QI do que qualquer outra coisa. Ou no máximo um boca a boca. Uma vez que você estava dentro das escolas, poderia fazer sua fama a assim almejar trabalhar naquelas que pagam bem. Quando ia às entrevistas, na maioria das vezes bastava ter um bom currículo, ter estudado em boas escolas. No meu caso não funcionava. As pessoas achavam que pelo fato de ter experiência dando aula de línguas, eu não conseguiria cuidar de uma turma de português, por exemplo.

Eu cheguei a trabalhar no ensino de Língua Portuguesa. Uma escola que só fazia propaganda e entregava muito pouco para pais e alunos, usa inclusive o nome da UnB disfarçado para atrair mais alunos. Afinal, convenhamos, quem vai pagar alguns mil reais para colocar seu filho numa faculdade privada? Hoje descobri que está sendo processada por dívidas trabalhistas. Mas o que era pior na escola era a rotatividade dos professores que impediam qualquer projeto pedagógico. Como a hora/aula era muito baixa, a maioria dos professores trocava de emprego assim que podia. Mas dos alunos, o valor cobrado era exorbitante. Dois alunos e meio serviam para pagar o meu salário, mesmo eu trabalhando os dois turnos. E cada sala tinha em média 30 alunos. Sim, senhor presidente, nós sabemos fazer essa conta básica...
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continua (...)

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