Devido ao tamanho, esse post será dividido em duas partes.
Eu sempre quis ser professora. Desde criança, dando aula de mentira para
amigas e bonecas até nos trabalhos de escola onde eu era intimada a falar em
público pelos grupos, que achavam que eu era boa de oratória. Nesse sentido
seguiu a minha formação. Entre assumir um sonho e desempenhar um papel sofri
bastante. Primeiro pelas pessoas que me diziam, "Mas você é tão
inteligente! Porque não faz um concurso público?"
Todo mundo acha melhor fazer um trabalho entediante em troca de um bom
salário no final do mês. Eu já trabalhei na iniciativa pública e nunca gostei
do serviço. Nada contra, mas não era pra mim. Pode ser que eu não tenha achado
a posição certa, mas a gente só vive uma vida e a minha se desenhou dessa
maneira.
Durante muito tempo o processo foi de aceitação. Eu dava aula durante a
graduação e dizia para mim mesma que era só para me manter até eu me formar. Já
pensava em fazer mestrado e fui aceita em um programa em Lille, na França. Nada
relacionado ao ensino. Mas não fui. Meus pais não tinham como me manter lá,
mesmo eu dizendo que podia trabalhar para me manter.
Minha mãe ficou com medo de não ter como pagar nem para eu voltar pro país caso as coisas dessem errado. Meus pais não falavam francês, nunca haviam saído do país e nós não tínhamos nenhum amigo ou conhecido na França. Paralelamente as aulas continuavam. Cada vez mais gente me procurava e eu não tinha tempo para encaixar os alunos. Eu cheguei a dar aula em 3 escolas ao mesmo tempo. Trabalhava tanto, que não tinha tempo para preparar aulas ou estudar. Tive que comprar uma moto para me locomover, pois do contrário, gastaria todo o meu salário em transporte. Mesmo assim eu continuava repetindo para mim mesma que isso era temporário. Tirei minha segunda habilitação para aumentar meu leque de atuação. Era agora formada em Letras Francês e Português.
Foi um alívio momentâneo. Pensei que poderia então passar num concurso e
dar aulas no GDF. O salário era relativamente competitivo em relação à
iniciativa privada e eu teria coisas que nunca tinha tido antes: 13º, férias,
carteira assinada... Cheguei a passar em um concurso para minha primeira área,
mas como ainda estava na graduação, não consegui a pontuação necessária
no currículo. Fiquei em sexto lugar de cinco vagas. Depois que eu me formei eu
simplesmente não conseguia tempo para estudar. Tinha que fazer para a área de Língua Portuguesa, que não era parte do meu cotidiano. Além disso, as nomeações estavam uma confusão. Tinha gente para ser nomeada quando abriam outros concursos, greve. A situação não era muito convidativa.
Durante esse tempo que trabalhei em escolas privadas eu vi de tudo. A
profissão de professor de língua estrangeira não é regulamentada. Isso quer
dizer que uma pessoa com qualquer nível superior pode dar aula de língua. Contrariamente
a isso, eu tinha uma licenciatura em língua e literatura francesa. Aprendi
inúmeras coisas na graduação. Até traduzir um texto do francês antigo para o
moderno. Fiz aula de expressão oral e escrita em língua francesa. Tive muitos
professores de outras nacionalidades, suíços, franceses, brasileiros que
viveram muitos anos na França e etc. Até um estágio de imersão eu fiz, pois
ganhei uma bolsa do governo francês.
Mas eu conviva com colegas que não eram professores, muito menos
formados em letras. Não sabiam o que era a forma nominal do verbo. Algo muito
útil de saber, pois os alunos brasileiros sempre se enrolam com tempos verbais
compostos. O que mais me marcou foi uma colega francesa. Nós dávamos aula numa
escola pequena e a dona me pediu para escolher o método de francês. Eu escolhi
um bastante comunicativo, com um pequeno foco na gramática. Bem dentro da
abordagem que estava (e ainda está) em voga no momento, a abordagem
comunicativa. A francesa veio trabalhar logo depois na escola e vinha reclamar
com um ar de superioridade a respeito do método. Muitos professores que eu
conheci tinham dificuldade com ele, pois davam aula de LE do mesmo jeito que
tiveram aula na sua língua materna, aula de gramática. Em sua maioria, esses
professores não eram formados em Letras, muito menos tinham uma licenciatura.
Ela não sabia usar o método. E era bem o boom do “professor nativo”, então,
para ajudar a dona da escola, de quem eu gostava muito, me ofereci para ajudar
os professores com o método.
A aula (ou ateliê) quase acabou em briga. A francesa se concentrou em
testar meus conhecimentos e como não conseguiu atingir seu objetivo, começou
implicar com qualquer coisa, inclusive minha tentativa de usar o “tu” para
expressar que éramos colegas e aquele ambiente era seguro para expor qualquer
dúvida ou insegurança. Além disso, foi um fiasco tentar explicar para a
francesa que ela só precisaria explicar a regra gramatical, caso o aluno não
conseguisse entendê-la naturalmente. Ela achava super importante explicar todas
as conjugações verbais na primeira aula. Outra coisa que ela não conseguia
entender era porque os alunos brasileiros tinham dificuldade para entender qual
o auxiliar usar no passé composé. Ao mesmo tempo, explicar que coisas no método
poderiam ser ignoradas, como a diferença entre o fonema [p] e [b], claramente
colocada ali para os hispano falantes. Mesmo assim, naquela escola, e em muitas
outras onde trabalhei, o meu salário, independente da minha qualificação, era
igual ao desses professores. Mesmo que eles não soubessem preencher um diário
ou fazer um plano de aula.
Somava-se a isso o fato de eu sempre ganhar por hora. A hora da aula que
eu dei e não a que eu preparei. Pode parecer estranho, mas o professor não
chega na sala de aula e tira milagrosamente analogias e piadas da cabeça.
Aquela musiquinha que encaixa tão bem com o conteúdo da aula, tudo aquilo foi
planejado. E um professor recém-formado leva entre 2 a 4 horas para preparar
uma aula de 45 minutos. Dependendo do assunto, se for algo que ele não gosta
e/ou não é muito bom, o tempo que ele vai passar estudando e preparando
aumenta. Eu, por exemplo, gosto muito mais de literatura do que de qualquer
outra coisa. Infelizmente, quase nunca tenho a oportunidade de juntar o “útil”
ao agradável. Até porque, na maioria das vezes, meu público só lê Harry Potter.
Então, até hoje, quando tenho que explicar o 3 groupe (ou a terceira
conjugação), perco algumas boas horas estudando e pensando novas maneiras de
abordar o assunto.
Isso sem contar as provas. Elaborar prova é sempre um martírio para mim.
Achar um texto no nível certo com o vocabulário que meus alunos possuem é quase
um milagre. Na maioria das vezes eu mexo no texto para ficar mais “A1” ou “B2”.
E os áudios para as partes de compreensão oral? Quando eu trabalhava sozinha,
quase sempre tinha que usar alguma faixa do próprio método fornecido pela
escola. Não tinha essa de internet em sala ou achar no torrent. Hoje,
felizmente é muito mais fácil encontrar um áudio livre de direitos na internet.
Mas mesmo assim, ainda é preciso muita pesquisa para que ele se encaixe no
arcabouço dos alunos.
Além disso, tem a rotina de correção de provas e trabalhos. Reuniões e
mais reuniões. Temos que nos manter atualizados. Cursos, seminários, simpósios.
Coisas que quando eu estava na iniciativa privada eram pouco valorizados.
Quanto maior a sua qualificação, pior para escola, afinal, terá que te pagar
mais. Mas se engana aquele que pensa que a coisa está fácil no sistema de
ensino privado.
Quando comecei a dar aula, era muito mais uma questão
de QI do que qualquer outra coisa. Ou no máximo um boca a boca. Uma vez que você
estava dentro das escolas, poderia fazer sua fama a assim almejar trabalhar
naquelas que pagam bem. Quando ia às entrevistas, na maioria das vezes bastava
ter um bom currículo, ter estudado em boas escolas. No meu caso não funcionava.
As pessoas achavam que pelo fato de ter experiência dando aula de línguas, eu não
conseguiria cuidar de uma turma de português, por exemplo.
Eu cheguei a trabalhar no ensino de Língua
Portuguesa. Uma escola que só fazia propaganda e entregava muito pouco para
pais e alunos, usa inclusive o nome da UnB disfarçado para atrair mais alunos. Afinal, convenhamos, quem vai pagar alguns mil reais para colocar seu filho numa faculdade privada? Hoje descobri que está sendo processada por dívidas trabalhistas.
Mas o que era pior na escola era a rotatividade dos professores que impediam
qualquer projeto pedagógico. Como a hora/aula era muito baixa, a maioria dos
professores trocava de emprego assim que podia. Mas dos alunos, o valor cobrado
era exorbitante. Dois alunos e meio serviam para pagar o meu salário, mesmo eu
trabalhando os dois turnos. E cada sala tinha em média 30 alunos. Sim, senhor
presidente, nós sabemos fazer essa conta básica...
continua (...)