quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Escola sem partido ou a ode ao sem argumento

Hoje resolvi ler mais a fundo a tal proposta da Escola sem Partido. Infelizmente ela confirmou o que eu já vinha pensando anteriormente. O que mais me chama atenção na proposta é o tom com que trata os professores, partindo do pressuposto que o professor carece de ética no exercício da profissão. Como se o professor estivesse em sala de aula com a única e exclusiva missão de doutrinar os alunos. Quase como um talibã, alguém que fosse incitar os alunos a defenderem seu ponto de vista com unhas e dentes.

O mais interessante é que o próprio projeto faz parecer que seus idealizadores nunca lecionaram de fato no ambiente que visam "proteger". Partem do pressuposto que, além do professor ter uma visão única da coisa, não respeitando as opiniões dos alunos, os alunos em si não tem qualquer senso crítico para opinar sobre temas e que são facilmente convencidos. Usando termos "inexperiência do aluno", "cooptar" e "sectários" o projeto faz parecer que o ambiente escolar não é nada além de um ambiente partidário e o temor no conteúdo da proposta parece ser o de alguém possa a vir provar logicamente que a visão política e ideológica dos idealizadores do projeto esteja errada (por mais que isso não esteja escrito no texto).

O projeto ainda instaura uma censura e um ambiente de desconforto para o professor, quem vem perdendo cada vez mais o respeito por parte dos alunos, devido ao modo como é visto tanto pela sociedade como pelo Estado.

Além disso, o projeto parece desconhecer a clara divisão entre conteúdo e opinião, visando o professor a ser meramente um fantoche que repete acriticamente o que vem escrito em manuais escolares e respeitando forçadamente aquilo que vai se tornar o erro factual do aluno disfarçado de "opinião pessoal".

No site oficial existe um guia de 10 passos para você identificar uma situação onde está sendo doutrinado. Resolvi analisar o guia, pois além de ter mais conteúdo do que aquele da proposta original, parece deixar mais claro a visão sobre política e cidadania de seus proponentes. Para aqueles que se interessarem pelo projeto, acessem o mesmo site acima e lá estará o conteúdo da proposta. Vamos analisá-lo:

1) se desvia frequentemente da matéria objeto da disciplina para assuntos relacionados ao noticiário político ou internacional;

Isso não é doutrinação. Chama-se interdisciplinaridade e também é matéria que costuma ser bastante cobrada em concursos públicos e vestibulares: conhecimentos gerais ou atualidades. Além disso, o descolamento dos conteúdos da realidade torna-os entediantes e de difícil compreensão.

2) impõe a leitura de textos que mostram apenas um dos lados de questões controvertidas;

Normalmente os professores sempre justificam a escolha de determinado material para o conteúdo referido. Com o acesso à informação, inclusive, os alunos costumam ser bastante incentivados a procurarem matérias sobre os assuntos trabalhados em sala de aula.

Talvez os propositores da lei estejam longe do ambiente escolar há algum tempo, mas o professor não é, não é mais visto como o detentor da verdade. Os alunos são sempre incentivados a procurarem suas próprias opiniões, fatos e ideias para argumentarem, concordarem ou discordarem daquilo que está sendo apresentado.

Não podemos temer controvérsias, a argumentação é uma qualidade necessária a qualquer pessoa que viva em sociedade. E mesmo que o aluno não tenha nenhuma opinião sobre o assunto, a leitura de textos diversos pode auxiliá-lo na formação de uma e/ou na análise de todos os pontos de vista que permeiam determinado assunto.

3) ridiculariza gratuitamente ou desqualifica crenças religiosas ou convicções políticas;

De fato, esse comportamento não é aceitável. O professor deve respeitar crenças religiosas e políticas, desde que não sejam socialmente danosas a nenhum outro grupo e não firam os direitos já estabelecidos na Constituição. Acredito que o professor não deve estimular, por exemplo, alunos neonazistas nem tão pouco aqueles que acreditam, mesmo se tratando de uma posição religiosa, que gays devem ir para o inferno pois essa visão estimula a violência física e psicológica em sala de aula.

4) pressiona os alunos a expressar determinados pontos de vista em seus trabalhos;

Existem disciplinas que exigem que o aluno reflita e expresse seu ponto de vista. Como escrever um texto dissertativo argumentativo sem expressar pontos de vista? Um ponto de vista, qualquer que seja (à exceção daqueles já citados), quando bem elaborado, é sempre aceito, mesmo que o professor pessoalmente não concorde com a opinião do aluno.

5) alicia alunos para participar de manifestações, atos públicos, passeatas, etc.;

Professores e alunos são seres inseridos em sociedade. Os alunos tem, muitas vezes, idade e liberdade para votar. Podem, portanto, participar de passeatas e manifestações. Manifestações que, muitas vezes, são do próprio interesse do aluno, quando visam melhorias no sistema educacional e na escola. Manifestar-se é um exercício legítimo da democracia.

Proibir os alunos de terem opiniões próprias e exercer sua cidadania é contrário ao regime político que vivemos, a democracia. Partir do pressuposto que os alunos só concordam com os professores quando são acuados e pressionados para tal é pressupor que os alunos são marionetes e fantoches sem senso crítico. Além disso, a pressuposição de crime quando o aluno concorda com aquele professor que tem uma visão política contrária ao Estado ou determinada lei ou grupo político que está em voga é proibir a pluralidade de visões, algo incondizente com um regime democrático.

6) permite que a convicção política ou religiosa dos alunos interfira positiva ou negativamente em suas notas;

Mais uma vez devemos procurar as vias já existentes para a resolução desse tipo de problema. Não é certo acabar com toda a autonomia do professor em sala de aula por conta de casos isolados. Existe ética na profissão e a maioria dos professores sabe respeitar esse limite.

7) não só não esconde, como divulga e faz propaganda de suas preferências e antipatias políticas e ideológicas;

Exprimir, ter preferenciais políticas e partidárias não é crime. É permitido por lei. Além disso, é mais fácil para o aluno contestar ou não a posição ideológica de um professor quando ele sabe qual é. Os alunos vão passar por situações diversas onde encontrarão pessoas com opiniões, preferências políticas, ideológicas e pessoais à sua volta. Precisam lidar com isso. Fica a encargo do professor expressar ou não suas opiniões. Sempre há o risco dos alunos se manifestarem contrariamente. Conheço muitos colegas que preferem não entrar nesse tipo de discussão, outros não veem mal em saciar a curiosidade dos alunos.

8) omite ou minimiza fatos desabonadores à corrente político-ideológica de sua preferência;

Algo que acontece em qualquer argumentação de qualquer nível. Mais uma vez, estamos falando de seres providos de inteligência, os alunos. Eles devem ser capazes de julgar os fatos por si mesmos. Além disso, mais uma vez, estamos na era de informação. Se os alunos não conseguem trazer para sala tais fatos desabonadores, ou não tem interesse no conteúdo aplicado ou não estão agindo com a autonomia e curiosidade esperada. Esse pode ser um problema individual e não algo que deva ser regido por lei.

9) promove uma atmosfera de intimidação em sala de aula, não permitindo, ou desencorajando a manifestação de pontos de vista discordantes dos seus;

Esse comportamento parece caracterizar um tipo de professor em extinção - aquele que se julga dono da verdade, única fonte do saber. Acredito que com o incentivo à capacitação dos professores e o conhecimento das novas correntes pedagógicas, esse comportamento não existirá mais.

10) não impede que tal atmosfera seja criada pela ação de outros alunos;

Mais uma vez, acredito que devamos estimular o debate em sala de aula. Estabelecer regras para a boa conduta do mesmo e a discussão entre os alunos são necessários. Mesmo assim, sempre existem aqueles que se sobrepõe na argumentação. Reconhecer uma derrota é parte da vida de todos nós. Não podemos acabar com a discussão de opinião apenas porque não sabemos argumentar. Esse é um incentivo para melhorarmos. Só porque um indivíduo é melhor que outro não significa que aquilo que ele faz bem deva ser criminalizado.

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Na minha opinião (e sim, agora é pessoal), o projeto é um tiro no pé. Vai acabar com a autonomia do professor. O respeito ao professor é necessário para com ele para tornar o ambiente escolar saudável. Respeito mesmo sem hierarquização é indispensável para uma dinâmica saudável em sala de aula.

Discordar das opiniões pessoais do professor sempre foi permitido e existem mecanismos legais e administrativos para lidar com professores que ultrapassam essa linha sem que seja necessário deslegitimar toda uma categoria que já sofre constantemente contra a força do Estado e que luta para que os menos favorecidos possam ter uma chance de acessar o mercado de trabalho e fazer parte da nossa sociedade.

Analisando o projeto parece algo em defesa do medíocre. Aquele que não sabe argumentar e que, de algum modo, foi beneficiado pelo nosso sistema de marcar X. Alguém que não sabe defender seu próprio ponto de vista ou respeitar a opinião de terceiros. Confunde fatos com opiniões e insiste em uma educação apenas conteudista pois carece de senso crítico.

Como aluna, desprezo o projeto pois fere minha inteligência e autonomia. Parte do pré suposto que ideias e pensamentos são controlados pela família e que o indivíduo não passa de uma massa amorfa a serviço do estado e da religião de seus parentes.

Como professora desprezo o projeto pois limita a atividade em sala, instaura um clima de terror e delação tal como visto nos tempos de ditadura militar. Além disso, não impõe aos alunos as consequências de seus atos, pois qualquer coisa que desagradá-los pode ser visto como postura ideológica e política. Não incentiva o respeito à pluralidade de ideias, não incentiva o pensamento crítico e não proporciona a formação de um cidadão. Pois sim, cidadãos devem conviver com a diferença de pensamento e de ideias, sejam elas políticas ou ideológicas.

Além disso, o projeto parece ter sido cunhado por pessoas que não admitem a discordância. Temem a discussão política e ideológica e ignoram os PCNs, o conteúdo e o próprio objetivo de qualquer instituição de ensino - a possibilidade de formar melhores cidadãos. Estamos inseridos em sociedade, isso é fato. Vivemos e convivemos com a diferença. Não podemos ignorá-la ou persegui-la.